09 dezembro 2006

Vida de quem é diferente

O Governo apresentou, segunda-feira, um dia depois de ter assinado o Dia Mundial dos Deficientes, um conjunto de 95 medidas a implementar até 2009 para promover a integração da pessoa com deficiência na sociedade. Apesar das melhorias registadas nos últimos anos, os portadores de deficiência continuam a enfrentar velhos problemas, como as barreiras arquitectónicas e a dificuldade em ingressar no mercado de trabalho. Mas há também quem não se resigne e consiga ultrapassar os muitos obstáculos.


A aposta na qualificação dos deficientes com vista à sua integração “autónoma e independente” no mercado de trabalho é uma das principais apostas do Plano de Acção para a Integração das Pessoas com Deficiência ou Incapacitadas (PAIPDI), apresentado segunda-feira. O documento contempla 95 medidas, a concretizar até 2009, que visam a reabilitação, integração e participação desses cidadãos na sociedade. Um programa “ambicioso” na óptica do Governo, mas encarado com cepticismo por quem lida diariamente com a problemática da deficiência, que receia pela não concretização das medidas anunciadas. Enquanto isso, os mais de 600 mil deficientes existentes em Portugal continuam a enfrentar no dia-a-dia velhas dificuldades, desde as barreiras arquitectónicas até à resistência na sua integração no mercado de trabalho. “Profissionalmente o deficiente tem de provar sempre o dobro de uma pessoa normal e, quando falha, é muito mais apontado”, diz Odete Fiúza, advogada e atleta paraolímpica, natural de Leiria, que actualmente está desemprega. Sublinhando a importância da inserção no mercado de trabalho como meio de integração na sociedade, Maria José Ruivo, presidente da delegação de Leiria da Associação Portuguesa de Deficientes, reconhece que as empresas estão hoje “mais sensíveis” para essa realidade, mas “há ainda um longo caminho a percorrer”.
Na opinião de Carla Wouters, sócia-gerente da IGM, empresa de Alcobaça recentemente distinguida pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social pelo “empenho e contributo exemplares para a integração socio-profissional de pessoas com deficiência”, é preciso “acreditar nas capacidades de trabalho” dos deficientes. Desde 1994, que a IGM acolhe utentes da CEERIA - Centro de Educação Especial, Reabilitação e Integração de Alcobaça, tendo efectivado do três pessoas em 2005, uma como estafeta e duas a trabalhar na embalagem. “São pessoas muito empenhadas. Têm consciência de que as oportunidades não são muitas e por isso dedicam-se ao máximo”, afirma Carla Wouters.

Quotas de emprego na gaveta

Apesar de ver com bons olhos a aposta na qualificação dos deficientes preconizada pelo PAIPDI, porque “a inclusão passa muito pela reforço de competências”, Maria José Ruivo tem “muitas dúvidas” quanto à concretização do programa, lamentando que nos últimos anos tenham sido anunciados muitas medidas que depois “não passaram do papel”. E dá o exemplo da quota de emprego, criada em 2001, estipulando que cinco por cento das vagas na Administração Pública fossem preenchidas por pessoas deficientes, mas que “só pontualmente tem sido aplicada”. A dirigente refere ainda a legislação relativa às acessibilidades a edifícios. “Em 1997 previa-se sete anos para a adaptação dos imóveis já construídos. Em Agosto passado saiu uma nova lei que dá mais dez anos”. Reconhecendo que tem havido “algum esforço” na melhoria das acessibilidades para todos, Humberto Henriques, presidente da delegação de Leiria da Associação de Cegos e Ambliopes de Portugal (ACAPO), diz que “ainda é preciso fazer muito”. A instituição entregou, este ano, um dossier a todas as câmaras do distrito com propostas para eliminar barreiras arquitectónicas, como rebaixar passeios, tapar buracos, assinalar passadeiras, introduzir sinais sonoros nos semáforos e retirar postes e candeeiros do meio dos passeios. “Na maioria dos casos são intervenções pouco dispendiosas, que melhorariam muito as condições de vida dos deficientes”, defende.

O que prevê o PAIPDI

- Criação de seis centros de reconhecimento, validação e certificação de competências

- Desenvolvimento de acções de formação à distância em empreendedorismo para pessoas com deficiência

- Aumento em 15 por cento da capacidade dos lares residenciais para pessoas com deficiência - Introdução de um programa curricular de língua gestual, abrangendo toda a população escolar surda (cerca de dois mil estudantes) dos ensinos básico e secundário

- Oferta de manuais escolares e de livros de leitura extensiva em formato digital a mil alunos cegos e com baixa visão

- Protocolos com 20 grandes empresas nacionais, para a contratação de pessoas com deficiência ou incapacidade, criando 400 estágios e de 200 integrações profissionais


Discriminação dá multas pesadas
A lei nº 46/2006, promulgada em 11 de Agosto passado, determina que qualquer acto discriminatório contra pessoas com deficiência constitui contra-ordenação punível com coimas entre 1.929 e 3.859 euros, para pessoas singulares. No caso de entidades colectivas, as coimas vão dos 7.718 aos 11.577 euros. Além das multas, e em função da gravidade da infracção, há a possibilidade de serem aplicadas sanções acessórias, como a interdição do exercício de actividade ou profissão e a suspensão de autorizações, licenças e alvarás por períodos até dois anos. Poderá ainda ser imposto o encerramento de estabelecimentos e empresas. São consideradas práticas discriminatórias a recusa ou condicionamento de venda, arrendamento ou subarrendamento de imóveis, bem como o acesso ao crédito bancário para a compra de habitação, o impedimento ou limitação ao acesso e exercício normal de uma actividade económica e a recusa ou limitação de acesso aos transportes. A limitação do acesso ao edifícios ou a locais públicos ou abertos ao público é punida com coimas entre os 250 44891.81 euros.
Deficientes em lares de idosos
A falta de capacidade de resposta dos lares residenciais para deficientes obriga a que algumas dessas pessoas sejam encaminhadas para instituições de acolhimento de idosos. Uma solução “desadequada”, reconhece Manuel Escalhorda, presidente da Cercipom (Cooperativa de Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Pombal), que recentemente inaugurou um lar com capacidade para 25 utentes e que, nos últimos dias, tem sido “inundada” com chamadas telefónicas de todo o País à procura de uma vaga nessa unidade residencial. “Há dramas terríveis de pais que se sentem a envelhecer e que temem não ter onde deixar os filhos”, diz Cristina Meireles, presidente da Cercilei, instituição que, com abertura de um novo espaço em Amor, ficará com capacidade para acolher 22 utentes em lar. Actualmente existem no distrito 114 vagas em unidades residenciais para deficientes, havendo várias candidaturas ao Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos Sociais. Segundo uma fonte do Centro Distrital de Segurança Social de Leiria, se os projectos fossem todos aprovados, ficariam suprimidas as necessidades da região.
Alguns números
- 634 408 – pessoas com deficiência existentes em Portugal
- 6.13% - percentagem da população portuguesa portadora de deficiência (53.63% são homens e 47.37 são mulheres)
- 2. 500 – número de cegos existentes no distrito de Leiria segundo os Censo, embora a ACAPO
estime que o valor real se cifre entre os 1.500 e os 2.000

(Testemunhos)

Humberto Henriques, telefonista e presidente da ACAPO,
Cego, DJ, locutor de rádio e guarda-redes
A infância vivida em Gestosa Fundeira, Castanheira de Pera, onde os amigos “nunca” o deixam de fora das brincadeiras, foi determinante no percurso de Humberto Henriques, telefonista nos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento (SMAS) de Leiria. Cego de nascença, fez da aceitação da deficiência um trunfo para ultrapassar os obstáculos que tem encontrado pelo caminho. Em criança, jogava a bola com os amigos, ficando normalmente à baliza, nadava no rio e andava de bicicleta. Era ele que marcava os números no telefone público da povoação a algumas pessoas analfabetas da aldeia e substituía o pai atrás do balcão da tasca que exploravam. “Servia os copos e fazia os trocos. Às vezes davam-me papéis em vez de notas, mas nunca me deixei enganar”, conta orgulhoso. Fez a instrução primária no Instituto de Cegos em Coimbra, onde também aprendeu braille e dactilografia. Foi na ‘cidade dos estudantes’ que se estreou aos microfones da rádio, um bichinho que ficou e que o levou a montar uma estação pirata na sua terra natal. Passou depois pelas Rádios Litoral Centro (Figueiró dos Vinhos) e Batalha. Foi disc-jokey numa discoteca e sábado passado estreou-se como actor, durante o Festival de tunas da cidade de Leiria, onde participou em vários sketchs. Antes de ingressar nos SMAS, trabalhou como telefonista nas câmaras de Castanheira de Pera e Batalha. “Não tenho problemas em ser cego e não faço questão de ver, porque sinto-me bem como sou”, diz Humberto Henriques, presidente da delegação de Leiria da Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal.
Luís Pinto, deputado municipal do PS e presidente do Académico de Leiria
Futebol como meio de integração O facto de ‘ser bom de bola’ foi meio caminho andado para Luís Pinto se integrar bem ente o grupo de amigos que se juntavam na encosta do castelo de Leiria para brincar e na escola. Nasceu sem braços devido a um medicamento que a mãe tomou durante a gravidez, mas isso não o impediu de se afirmar nos meios associativo e político. Diz que o ano que passou no centro de reabilitação de Alcoitão, onde os técnicos incutiram nos pais a necessidade de lhe darem espaço, foi “muito importante” no seu percurso de vida, assim como o facto do irmão fazer questão que participasse nas brincadeiras de rua e de sempre ter “vivido bem” com a deficiência. De tal forma, que rejeitou as próteses que lhe foram colocadas em Alcoitão, “porque a vantagem era mais estética do que funcional”. Não se furtava às brigas e no futebol era um defesa duro. “Ou passava a bola ou o jogador”, recorda, frisando que a estratégia servia para mostrar aos outros que também lhe podiam dar pancada. “Não queria ser poupado por ser deficiente”. Aos 14 anos, fundou o Clube Académico de Leiria, com mais um grupo de amigos. Foi também nessa época que ingressou na Juventude Socialista (JS). Em 1976, assumiu a coordenação do Núcleo Concelhio de Leiria da JS, que chegou a ser o segundo maior do País em número de militantes, e três anos depois liderava o núcleo distrital, cargo que desempenhou até aos 30 anos. Fez parte de vários órgão nacionais da JS e do PS, tendo sido convidado na década de 90 para ir para Lisboa “fazer política”. É deputado na Assembleia Municipal de Leiria desde os 18 anos, integra a Comissão Política Nacional e é técnico do Instituto do Desporto de Portugal . “O deficiente não tem necessariamente de estar condenado a ficar fechado em casa ou ser um coitadinho”.
Odete Fiúza, atleta paraolímpica e advogada
Entre a advocacia e as pistas de atletismo Portadora de deficiência visual, um problema com o qual nasceu, Odete Fiúza licenciou-se em Direito em 1996, tendo exercido advocacia até ser convidada a trabalhar no Instituto de Desporto de Portugal (IDP). Da sua experiência como jurista, recorda a forma como foi tratada pelas pessoas que defendeu, que “centravam a sua atenção na resolução dos processos e não na deficiência”, como um das “maiores compensações profissionais” que já viveu. Esteve no IDP até 2004, fazendo consultoria jurídica e um trabalho de investigação sobre os regulamentos de alta competição no seio das federações desportivas. Depois do seu vínculo com o IDP não ter sido renovado, acabou por integrar um projecto da Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Homens e Mulheres, ficando responsável pela componente jurídica e pelo acompanhamento das participantes no programa, que acabou em Setembro. À procura de emprego e a fazer uma pós-graduação em Direito Desportivo, Odete Fiúza, natural de Santa Eufemia (Leiria), prepara-se para os próximos jogos paraolímpicos, a realizar em Pequim. A concretizar-se, essa será a sua quarta participação nas olimpíadas para deficientes. Desde 1993, tem representado Portugal em sucessivos campeonatos da Europa e do Mundo de atletismo, tendo conquistado várias medalhas de prata e bronze.
Maria Anabela Silva
anabelasilva.jl@gmail.com

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